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sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Vivendo para a Glória de Deus e o bem do próximo: o cristão e a usura em Calvino

Texto publicado na Vivendo a Fé 16 - "Calvino para os dias de hoje", da Editora Pendão Real.
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Texto central:  Ex 22.25-27

Leituras bíblicas diárias:
Seg – Lv 25.35-38
Ter – Dt 23.19-20
Qua – Sl 15.1-5
Qui – Jr 15.10-21
Sex –  Ez 18.5-9
Sáb – Mt 25.14-30
Dom – Lc 6.27-36


INTRODUÇÃO

         Você já recebeu juros? Já pagou? Então vai se interessar pela influência de Calvino em relação à usura. Mas o que é usura? É a cobrança de juro. Usurário é aquele que empresta para receber juro.
         Nesta lição vamos refletir sobre a teologia de Calvino sobre a usura, que teve grande impacto sobre a história e que, ainda hoje, tem muito a contribuir sobre este tema, importante a todos nós. Em primeiro lugar, faremos uma breve reflexão sobre a usura na Bíblia. Em segundo lugar, sobre a usura na Igreja Antiga e Medieval. Finalmente, sobre as contribuições de Calvino sobre o tema.



1. A USURA NA BÍBLIA

         A cobrança de juros, hipotecas e penhores  é conhecida já no Antigo Testamento. A Bíblia apresenta vários textos acerca do assunto (Ex 22.25-27; Lv 25.35-38; Dt 23.19-20; Sl 15.1-5; Ez 18.5-9; Mt 6.9-15; ). A prática de empréstimos de bens ou de dinheiro mediante cobrança de juros era comum no Antigo Oriente, e fonte de muitos abusos (SICRE, 1990, p. 70). Por isso só pode habitar o tabernáculo do Senhor “o que não empresta o seu dinheiro com usura, nem aceita suborno contra o inocente” (Sl 15.5), pois “cobrar juros em um empréstimo era estritamente proibido (...) porque isso era visto como uma extorsão”( BROWN, 2007, p. 1040.) contra o pobre e o necessitado. O fundamental na oposição bíblica à usura está na defesa do pobre e necessitado, na defesa da vida e da solidariedade.

“Para refletir”.
* Você conhece alguém que contraiu empréstimo por motivo de necessidade e foi explorado pela cobrança de altas taxas de juros?


2. A USURA NA IGREJA ANTIGA E MEDIEVAL

         A cobrança de juros foi rejeitada tanto por antigos filósofos quanto por teólogos da Igreja Antiga  e Medieval. Entre eles estão Aristóteles (filósofo), Ambrósio, Jerônimo e Agostinho (pais ocidentais), Atanásio, Basílio o Grande, Gregório de Nissa (pais orientais) e Pedro Lombardo e Tomás de Aquino (teólogos medievais).
         O historiador Jacques Le Goff afirma que, já na Idade Média, há uma distinção entre usura e juro: “usura e juro não são sinônimos, nem usura e lucro: a usura intervém onde não há produção ou transformação material de bens concretos”( LE GOFF, 1986, p. 18). No entanto, o empréstimo destinado à produção de mercadorias continuaria, nesse caso, sendo considerado usura, pois o que está em jogo não é o que se faz com o valor emprestado, mas o juro decorrente do empréstimo.
         O usurário era considerado alguém que rouba a Deus, pois ganha dinheiro ‘vendendo’ o tempo, que a Deus pertence, e é ladrão porque rouba os cristãos, a quem deveria estabelecer vínculos de fraternal solidariedade. Além disso, quebra o mandamento divino do trabalho conquistado com o suor do rosto (Gn 3.17-19). Le Goff defende inclusive a tese de que o purgatório foi criado na Idade Média diante de um dilema medieval: por um lado, a usura era proibida pela Bíblia, pela Tradição e pela própria cultura medieval, mas por outro lado, em razão do contexto sócio-político-econômico, com o desenvolvimento de uma economia de mercado, a sociedade precisava cada vez mais do usurário. Para continuar condenando a usura, mas para salvar o usurário do inferno, e assim a sua própria atividade pecadora, a Igreja Medieval cria o purgatório, que será inclusive um meio de despojar o usurário dos seus bens. Conforme afirma Le Goff, “a única probabilidade de salvação do usurário, já que todo o seu lucro é mal adquirido, é a restituição integral do que ganhou”( LE GOFF, 1986, p. 43). Para o historiador, o criador do capitalismo não é Calvino, mas é o usurário:
“Os iniciadores do capitalismo são os usurários, mercadores do futuro, mercadores do tempo que, desde o século XV, Leon Battista Alberti definirá como [mercadores] do dinheiro. Esses homens são cristãos. Aquilo que os retém no limiar do capitalismo (...) é o medo, o medo angustiante do Inferno. (...). A esperança de escapar ao Inferno, graças ao Purgatório, permite ao usurário fazer avançar a economia e a sociedade do século XIII em direção ao capitalismo”( LE GOFF, 1986, p. 90).

         Assim, a Igreja Antiga, Medieval (ocidental) e Bizantina (oriental) condenava a usura.  O próprio reformador Martinho Lutero rejeitava a cobrança de juros, fazendo coro aos teólogos da Igreja Antiga e Medieval.

“Para refletir”.
* A disciplina eclesiástica geralmente é aplicada em casos de pecados sexuais. O mesmo acontece se um membro da Igreja ou mesmo um ministro ganha dinheiro por meio de agiotagem, cobrando taxas de juros abusivas de pessoas necessitadas? Qual a sua opinião a respeito?



3. CALVINO E A USURA

         O contexto econômico de Calvino não é o de uma economia agrária, típica da Idade Antiga e Medieval, mas sim de uma economia de mercado. A economia de mercado se desenvolveu na Europa desde meados dos séculos XII e XIII e foi nutrida pelas seguintes forças, anteriores ou contemporâneas à Calvino: o mercador itinerante (incluindo os usurários), o processo de urbanização, as cruzadas, o surgimento dos Estados nacionais e a descoberta das Américas.
         Calvino sabia que novas perguntas exigem novas respostas. Por isso, apesar da elevada consideração pela doutrina dos Pais da Igreja e dos Concílios Ecumênicos da Igreja Antiga, Calvino busca compreender a usura a partir das Escrituras à luz da nova realidade sócio-político-econômica, e dá uma resposta diferente da que fora dada até então. Calvino discerne a razão pela qual a Bíblia se manifesta contrária à usura: a exploração do semelhante. Calvino entende que a proibição da usura na Bíblia visa a proteção do necessitado. Conforme afirma André Biéler, Calvino “verifica que, ao falar do juro ou da usura, a Bíblia não visa ao fenômeno relativamente recente e muito mais difundido do empréstimo de produção. Nesse caso, não se trata de socorrer alguém e, portanto, de abusar da miséria alheia exigindo a compensação em juros pelo empréstimo feito. Trata-se, antes, de emprestar certa soma a fim de constituir um capital de trabalho”( BIÉLER, 2009, p. 54). Assim Calvino declara que o dinheiro, assim como um bem imóvel ou outra mercadoria qualquer, apresenta uma “natureza produtiva”, ou seja, pode gerar lucro.
         Para que se perceba a grandeza da contribuição de Calvino em relação à usura, é necessário entender essa contribuição à luz dos limites que impõe à própria usura e também à luz de outros temas de seu pensamento e prática social em Genebra.
         Um dos pontos mais importantes do pensamento econômico do reformador é a sua afirmação de que o alvo da vida cristã não pode ser a busca pelo lucro, mas sim da glória de Deus. E buscar a glória de Deus é se submeter à Sua Palavra e ao Santo Espírito, que conduzem o ser humano à partilha e ao amor! Por isso “Calvino denomina os ricos ‘ministros dos pobres’, ao passo que os pobres, enviados aos ricos da parte de Deus para colocar à prova sua fé e sua caridade, são chamados ‘recebedores de Deus’, ‘vigários de Cristo’, ‘procuradores de Deus’”( BIÉLER, 2009, p. 33). É por isso que Calvino se manifesta contra o empréstimo aos necessitados: estes devem receber empréstimos sem juros, ou mesmo serem alvo da partilha de bens pelos mais abastados! Calvino é citado em muitos manuais clássicos sobre história da economia(Por exemplo, HEILBRONER, 1972, pp. 73-77) ou história das doutrinas econômicas(HUGON, 1962, pp. 73-74), mas não raro é mal interpretado. É o que Biéler vai afirmar também sobre os sociólogos, a exemplo de Max Weber. Biéler afirma que “Weber cometeu o grave erro de identificar esse protestantismo com o calvinismo das origens” (Biéler, p. 57). O autor afirma também que “se Max Weber tivesse estudado o calvinismo do século XVI, e não o do século XVIII, teria chegado a outras conclusões. Teria notado certamente que esse calvinismo das origens (...) procurava prevenir-se contra os desvios da natureza humana mediante freios que o evitavam descambar para os excessos de uma sociedade sujeita ao primado do lucro e à regra soberana de sucesso individual”(Biéler, p. 58).
         Biéler aponta várias restrições à usura por parte de Calvino: o reformador “não tem por lícito o recebimento de juros, mesmo quando autorizado pela lei, no caso de empréstimo feito a pessoa pobre. Por outro lado, entende que os juros não devem ser aceitos pelo emprestador se o devedor não ganhar, com o empréstimo obtido, o equivalente a esses juros. Enfim, condena todo e qualquer juro que ultrapasse a taxa normal”( BIÉLER, 2009, p. 54).
         A aprovação de Calvino às taxas de juros cobradas em Genebra, que variaram de 5% ao ano em 1538 para posteriores 6,6% ao ano em 1544, bem menores que as taxas de juros praticadas pelos reis católicos Carlos V e Philippe II, que a limitaram a 12% ao ano(BIÉLER, 2009, pp. 52-53), ao lado da defesa do controle rígido dessas taxas, deixam claro que Calvino não defendia a liberação indiscriminada (ou abusiva) das taxas de juros.



CONCLUSÃO

         Calvino tem muito a ensinar ao mundo e à Igreja contemporânea!
         Calvino aprova a cobrança de juros no caso de empréstimos destinados à produção, que geram emprego e renda. É contra a liberação indiscriminada da taxa de juros, a lógica da especulação financeira e a exploração do necessitado. Proíbe expressamente a cobrança de juros em empréstimos aos necessitados, para que sejam socorridos. Afirma que o alvo de uma economia não deve ser o lucro, mas o bem-estar social. Com sua teologia e prática, Calvino estava séculos à frente de seu tempo! Defendia um desenvolvimento socialmente sustentável!
         Enquanto a Igreja Medieval era contrária à usura, sendo ela mesma uma grande usurária medieval, Calvino se manifesta favorável à cobrança de juros, desde que o empréstimo seja destinado à produção e não leve à exploração do próximo.
         Poderíamos dizer que a usura em Calvino é permitida na perspectiva do bem do próximo e da glória de Deus.

“Para refletir”.
* Que aspectos da teologia e da prática de Calvino em relação à usura você acha que deveriam ser adotados hoje? (Cite alguns exemplos).



BIBLIOGRAFIA

BIÉLER, André. O Humanismo social de Calvino. São Paulo: Pendão Real, 2009
LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida: a usura na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1986.
SICRE, José L. A Justiça social nos profetas. São Paulo: Paulinas, 1990.
BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. (editores). Novo Comentário Bíblico São Jerônimo. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2007.
HUGON, Paul. História das doutrinas econômicas. São Paulo: Atlas, 1962.
HEILBRONER, Robert L. A Formação da sociedade econômica. Rio de Janeiro, Zahar, 1972.

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